segunda-feira, 21 de março de 2011

Onirocrítica.



Os carvões do céu estavam tão perto que tive medo do seu ardor. Estavam quase me queimando. Mas eu tinha consciência das eternidades diferentes do homem e da mulher. Dois animais dessemelhantes se acoplavam e as roseiras nasciam por mergulhia dos parreirais que se apresentavam de cachos de lua. Da garganta do macaco saíram chamas que flordelisaram o mundo. Nos mirtais um arminho embranquecia. Nós lhe perguntamos a razão do inverno falso. Eu devorava rebanhos adustos. Orkesina apareceu no horizonte. Nós nos dirigimos àquela cidade lamentando os vales onde as macieiras cantavam, assobiavam e enrubesciam. Mas o canto dos campos trabalhados era maravilhoso:

Pelas portas de Orkesina

Quer entrar um carroceiro

Pelas portas de Orkesina

Quer sair um pé-rapado


E os guardas da cidade

Indo logo ao pé-rapado

“O que leva da cidade?”

“Deixo lá meu coração”


E os guardas da cidade

Indo logo ao carroceiro:

“O que traz para a cidade?”

“Coração casamenteiro”


Quantos corações ali!

Os guardas riam que riam

Pé-rapado a estrada é turva

Embriaga o amor carroceiro


Da cidade os belos guardas

Tricotavam lindamente

Da cidade então as portas

Se fecharam lentamente


Mas eu tinha consciência das eternidades diferente do homem e da mulher. O céu amamentava as suas panteras. Percebi então na mão manchas carmesins. Pela manhã, piratas levavam nove barcos ancorados no porto. Os monarcas se divertiam. E as mulheres não queriam chorar nenhum morto. Preferem os reis velhos, melhores no amor que os velhos cães. Um sacrificante desejou ser imolado no lugar da vítima. Abriram-lhe o ventre. Lá dentro vi quatro I, quatro O, quatro D. Serviram carne fresca e cresci de repente depois de ter comido dela. Macacos parecidos com suas árvores violavam túmulos antigos. Chamei um daqueles bichos em quem cresciam folhas de louro. Ele me trouxe uma cabeça feita de uma única pérola. Peguei-a nos braços e a interroguei, depois de tê-la ameaçado de jogá-la de volta no mar se não me respondesse. A pérola era ignorante e o mar a engoliu.

Mas eu tinha consciência das eternidades diferentes do homem e da mulher. Dois animais dessemelhantes se amavam. Mas apenas os reis não morriam desse riso e vinte alfaiates cegos vieram para cortar e costurar um véu destinado a cobrir a sardônica. Eu mesmo os dirigia, às recuadas. Pela tarde, as árvores voaram, os macacos ficaram imóveis e eu me vi centuplicado. A multidão que era eu se sentou à beira do mar. Grandes navios de ouro passavam no horizonte. E quando foi noite fechada, cem chamas vieram ao meu encontro. Procriei cem filhos machos cujas amas-de-leite foram a lua e a colina.

Eles amaram os reis desossados que eram agitados nos balcões. Chegando às margens de um rio, peguei-o com as mãos e o brandi. Aquela espada me desalterou. E a fonte lânguida me advertiu de que, se eu detivesse o sol, eu o veria quadrado, de verdade. Centuplicado, nadava para um arquipélago. Cem marinheiros me acolheram e tendo me levado a um palácio lá me mataram noventa e nove vezes. Eu caía na gargalhada, então, e dançava enquanto eles choravam. Dançava de quatro. Os marinheiros não ousavam mais se mexer, porque eu tinha tomado o aspecto espantoso do leão...

De quatro, de quatro.

Meus braços, minhas pernas, se pareciam e meus olhos multiplicados me coroavam atentamente. Eu então me levantava para dançar com as mãos e as folhas.

Eu estava de luvas. Os insulares me levaram a seus pomares para que colhesse frutos parecidos com mulheres. E a ilha, à deriva, foi encher um golfo onde da areia logo brotaram árvores vermelhas. Um animal flácido coberto de penas brancas cantava inefavelmente e um povo inteiro o admirava sem se cansar. Encontrava no chão a cabeça feita de uma única pérola e ela estava chorando. Brandi o rio e a multidão se dispersou. Uns velhos comiam aipo e, imortais, não sofriam mais do que os mortos. Sentei-me livre, livre como uma flor em sua estação. O sol não é mais livre do que um fruto maduro. Um rebanho de árvores pastava as estrelas invisíveis e a aurora dava a mão à tempestade. Nos mirtais, sofria-se a influência da sombra. Um povo inteiro amontoado num lugar sangrava cantando. Nasceram homens do licor que corria do lugar. Brandiam outros rios que se entrechocavam com ruído argentino. As sombras saíram dos mirtais e se foram para os jardinzinhos que regava um broto de olhos de homens e de bichos. O mais belo dos homens me pegou pela garganta mas consegui derrubá-lo. De joelhos, mostrou-me os dentes. Eu tocava neles; saíram sons que se transformavam em serpentes da cor das castanhas e sua língua se chamava Sainte-Fabeau. Desenterraram uma raiz parente e comeram dela. Era da grossura de um rábano. E meu rio quieto os submergiu sem afogá-los. O céu estava cheio de favas e de cebolas. Eu maldizia os astros indignos cuja claridade corria pela terra. Não aparecia mais nenhuma criatura viva. Mas elevaram-se cantos em toda parte. Eu visitava cidades vazias e cabanas abandonadas. Recolhia as coroas de todos os reis e fiz delas o ministro imóvel do mundo loquaz. Navios de ouro, sem marinheiros, passavam no horizonte. Sombras gigantescas se perfilavam nas velas distantes. Muitos séculos me separavam dessas sombras. Eu me desesperava. Mas eu tinha consciência das eternidades diferentes do homem e da mulher. Sombras dessemelhantes ensombreciam com seu amor o escarlate dos velames. Enquanto os meus olhos se multiplicavam nos rios, nas cidades e na neve das montanhas.

Contos breves – Guillaume Apollinaire – L&PM

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